Uma mulher chamada Carolina

 Dias de consulta

Hoje foi só mais um dia de consulta com a Dra Carolina. 

Só mais um dia o escambau. Hoje foi o dia da consulta mais esperada de todas. Eu demorei pra agendar. Quando agendei, eu remarquei. Mas eu queria muito.

O medo, a vergonha e a incerteza tem uma capacidade incrível de paralisar a mente. Você pode ser forte como um canhão que derruba fortalezas, mas de repente alguma coisa te coloca no chão e você fica incapaz de matar uma formiga. Se vacilar, a formiga te mata.

Abri a porta do consultório seguro de tudo o que tinha a falar. Já havia decorado aquelas falas dez trilhões de vezes.

Eu sempre tento levar todas as minhas consultas e procedimentos médicos com leveza, humor e calma. Até nos momentos mais complexos, nas tantas passagens pelas UTIs, nas torturosas sessões de hemodiálise, eu nunca deixei a bola cair. Sabia que essa força mental que eu tirei sei lá de onde era uma das chaves da minha salvação. 

E hoje não foi diferente. 

Antes de entrar, eu sempre bato na porta e peço licença. Mania besta, mas se eu entrar na tua casa um dia, fatalmente farei isso. Aprendi assim. Pois foi o que fiz: três batidinhas, um pedido de licença e já ouço em troca toda a simpatia dela: "Olha ele aí! Pode entrar, Dani".

Não deixei nem que ela terminasse a frase; aquele script decorado estava pegando fogo dentro de mim e eu tinha que soltar um milhão de coisas em cima dela ali naquela hora, daquele jeito. Já falei lá da porta:

- Até que enfim estou com a mulher que eu mais quis ver nas últimas semanas, fora a minha esposa!

É, eu pensei nessa frase idiota pra falar pra ela, mas se tem um conjunto tosco de palavras capazes de resumir o que eu passei as últimas semanas matutando, realmente é esse.

Ela riu e falou qualquer coisa a corresponder o gracejo.

Sequencia:

- Doutora, como já previsto, a vida do seu paciente aqui é uma montanha russa, e eu tenho coisas incríveis e coisas horrorosas pra te contar. Por onde quer que eu comece?

Lá no meu script decoradíssimo, eu achei que ela ficaria séria e pediria pra eu contar o que houve de grave. Afinal, ela é uma médica e estamos, juntos, passando por um momento delicado da minha saúde que, até este exato momento, não dividi com ninguém, exceto a Aryadne, que é continuação da minha alma e dela nada pode ser escondido.

Só que a Dra Carolina conhece bem o seu paciente Daniel. Além disso, Dra Carolina é uma personalidade de pensamento lépido. Ela te saca antes de você achar que ela pode estar te sacando. E aí ela quebrou as minhas pernas. Simplesmente disse: "Por onde você se sentir mais confortável, Dani".

O que eu tinha pra falar pra ela pode ser qualquer coisa que vier na sua cabeça agora. Menos confortável.

Ô mineirinha sabida (sim, ela é malandra mas eu também saco ela, e o sotaquinho leve já me fez enteder um monte de quejo sobre ela). Meia dúzia de palavras e o desconfortável se fez confortável por pura e simples falta de opção.

Então tá. Hora de encarar de frente pela segunda vez o que eu posso classificar como o momento mais perigoso, vergonhoso, incompreensível e surreal da minha vida.

Sem medo nenhum do julgamento - que eu sei que ela não faz - ou da bronca - e isso ela faz e bem, comecei a minha história pessoal de terror pelo começo.

Mas pra você o começo tem que ser um pouco antes do que foi o começo pra ela, então me escuta aí um pouco porque eu estou precisando de ouvido. Senão não teria escrito tudo isso até agora. Então só ouve. Lê, no caso.

Com o passar do tempo após o transplante, eu fui melhorando cada vez mais. Fiz fisioterapia, depois fui pra academia. Fiz luta, fiquei mais fortinho. Engordei um pouco, comecei a me sentir realmente bem.

E o que faz uma pessoa que está se sentindo ótima, uma pessoa que passou praticamente toda a sua vida acompanhada do álcool? Uma pessoa que se acostumou a sentar numa mesa de bar com os amigos e tomar 20 garrafas de cerveja? Uma pessoa que faz piadas com o fato de beber, que escreve um blog sobre receitas de churrasco onde o tempo de preparo de cada receita é medido em latinhas de cerveja? 

Quando está super bem e esbanjando saúde, essa pessoa bebe. 

E te convido - ou convoco - para uma sincera reflexão. Fecha teus olhinhos aí e pensa na tua relação com o álcool. Ele é importante pra você? Faz sentido juntar os amigos, alugar uma casa na praia num feriado prolongado e ficar todo mundo sóbrio? Ou vocês querem mesmo é manguaçar e dar risada de tudo livre e levemente?

É sobre beber, cair e levantar que canta a dupla sertaneja, né?

Mas e o cara que fica doente fazendo exatamente a mesma coisa que você? É o vagabundo que não soube a hora de parar? Ou foi sorteado e teve o azar de desenvolver uma gordurinha no fígado que progrediu pra uma cirrose? 

Fica aí o pensamento.

Voltando ao assunto, o fato é que eu voltei a beber.

Há mais ou menos um ano atrás, eu instituí o "vinho do mês". Era ir ao mercado, comprar uma garrafa de um vinho minimanente decente, saborear e pronto. Agora, só no mês que vem.

Mas a doença do alcoolismo é foda, amigo. A partir do quarto ou quinto mês, já viraram duas garrafas. Depois três, quatro.

Não passou disso, mas foi o suficiente pra fazer um estrago no meu fígado transplantado. 

Eu nunca menti pra Dra Carolina. Nem pra médico nenhum. Quando notei as enzimas sendo alteradas, já liguei o sinal amarelo e contei pra ela. Ainda achando que eu poderia parar na hora que quisesse. Então bastava parar e tudo voltaria ao normal. 

Não é assim, amigo. Não pra mim. Eu não havia me conscientizado disso. Mas a Dra Carolina, com a perspicácia que tem, sacou logo de cara e começou a me ajudar com os cuidados. Mesmo eu não aceitando, não querendo muito, resistindo. 

Até que um dia eu notei que realmente não dava pra parar sozinho. 

Esse é o primeiro passo pra driblar o alcoolismo: reconhecer que você tem uma doença com a qual você vai lutar pro resto da vida. E não vai vencer. Mas pode driblar pra sempre. Tu vai ser o Garrinhca da tua própria vida. Se você quiser, e encontrar as pessoas e ferramentas certas pra tal. E a Dra Carolina era ao mesmo tempo a pessoa e a ferramenta que eu precisava. E como eu queria, pedi ajuda.

Ela me receitou alguns remédios pra conter a fissura de beber, me manter mais calmo e com a cabeça no lugar e boa.

Já te coloquei no contexto da coisa. Agora voltemos ao toc-toc-dá-licença-pode-entrar

Ela me disse pra começar pelo mais confortável. Mas eu não tive saída, então respirei fundo e comecei pelo mais desconfortável.

De acordo com a consulta anterior, eu estava tomando Cloridrato de Sertralina, um antidepressivo relativamente leve. E também Diazepam, que já é mais forte, pra ajudar a controlar as crises. Nas duas primeiras semanas, até qe eu parecia ir bem com essa combinação.

Só que o cérebro da gente é um grande amendoim. Vem numa embalagem feia, dura de abrir, não tem tempero e ainda precisa assar pra servir pra alguma coisa.

E o amendoim deste Daniel aqui não é dos melhores. 

Comecei a contar pra Dra Carolina a parte desconfortável.

Naquela segunda-feira, eu acordei no meio da noite. Fui até a cozinha, abri a gaveta e peguei a minha faca mais afiada. Todo cozinheiro que se preza tem aquela faca do cabo branco, manja? Uma indestrutível, que pega fio até com a força do vento e fatia um mamute como carpaccio. Eu não sou diferente, e tenho um belo exemplar dessa aí.

Passei a faca na chaira pra ficar ainda mais afiada, limpei o restilho de aço num pano de prato e me deitei na cama. Era hora de acabar com tudo isso.

Mandei um whatsapp com um bonito agradecimento para a minha tão amada Aryadne, me deitei calmamente, respirei fundo e fiz o primeiro corte.

Segurando a faca com a mão direita, fiz o corte no pulso esquerdo. Senti dor.

O pior de tudo é que foi uma dor gostosa. Você não imagina o quanto está sendo difícil pra mim reviver aquela loucura toda. Mas senti prazer ao sentir o aço afiadíssimo entrando pelo meu pulso.

Esperei uns segundos e passei a mão direita sobre o corte. Estava saindo sangue. Mas eu esperava um rio de sangue, e era um fiapo. Novo corte.

A estranha sensação de prazer, novamente.

Mais um corte, e mais outro e mais 10. Foram 17 cortes no braço esquerdo, segurando a faca na mão destra.

Um pouco mais de sangue, mas eu ainda estava vivo e não me parecia em nada que aqueles cortes iriam me levar à morte. 

Pus a mão no fio da faca e tinha bastante sangue coagulado na lâmina. 

Claro, coagulou sangue e a faca perdeu o fio. Fui até a cozinha, friamente lavei a faca. Com o lado amarelo da esponja, como manda o manual. Passei novamente na chaira e limpei a lâmina no mesmo pano de prato. Deitei calmamente na cama e recomecei o processo.

Porque não saía o rio de sangue que eu tanto queria?

Porque eu sou destro e tenho controle sobre a mão direita. Será? Logo, quando sinto dor no outro braço, retiro instintivamente a força da mão direita. Acho que é assim.

Então bora inverter a mão. Segura a faca com a mão esquerda pra cortar o pulso direito.

De novo, a sensação do fio da faca entrando na carne. De novo, o prazer esquisito. De novo, não jorrava sangue e não acontecia o que eu queria. Sem contar, foram os mesmos 17 cortes. Pitágoras não tem lugar nessa hora, mas a loucura produz atos repetitivos, creio eu.

Me lembrei que na perna direita temos uma veia que, se cortada, te mata em minutos. Meti a faca na virilha e fiz um corte, de certa forma, profundo. Mas eu errei a veia. Não sabendo ao certo a localização dela, desisti da perna.

Eu já tinha ido longe demais. Não dava pra voltar atrás. Mas não estava dando certo, era preciso uma medida mais drástica.

Pescoço.

Fiz o primeiro corte no pescoço. Forte, de um lado ao outro. Cortou bem, sangrou. Agora vai!

Eu fiz hemodiálise. Eles fizeram uma pequena cirurgia onde dois catéteres enormes foram costurados na minha jugular. Pois por isso mesmo, eu sabia onde ela fica.

Passei a faca no local dela, cortei um pouco mais fundo. Continuei seguidamente me cortando locais diferentes do pescoço.

Senti o pescoço empapado de sangue. Eu estava exausto. Física e mentalmente.

Pronto. Agora é só esperar dormir e não acordar mais. 

Mas pra garantir, apoiei a faca no colchão, encaixei a ponta no local do fígado e me deitei sobre ela. Apaguei.

No dia seguinte, acordei. Abraçado à faca cheia de sangue. O pescoço todo cortado, os pulsos e a coxa direita. 

E uma dúvida horrível: Porque eu fiz isso?

Eu estive consciente tem todos os momentos, me recordo de cada corte que fiz, me lembro dos pensamentos e intenções. Mas não me lembro o motivo.

Eu nunca, jamais pensei em me matar. Jamais imaginei passar por uma situação dessas. Eu sou feliz, casado com a mulher que eu amo, tenho aspirações, planos. Não tenho motivo algum pra fazer nada parecido, nem jamais atentar contra a minha própria vida assim, com essa frieza toda.

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