Preconceituoso Eu
Preconceituoso eu.
Botei logo uma Liniker aqui na vitrolinha streamilificada do meu 3 em 1 Samsung e já começo esse texto com um putaqueiarius: como isso é BOM. Rapazeada lá da Grammyolândia tá é certa mesmo de sacar da estatueta e jogar na mão da nega. Ficadica: Ouça Liniker.
Ah, mas ela é viada.
É.
Ou não é.
Quem sabe é ela.
Né da minha conta não, zé. Nem da sua.
Ela é mulher dasfoda, que mata barata de chinelo fino. Do bigode grosso. É uma mulher trans, preta e pobre. Tinha tudo pra dar errado e comer o pão que o diabo amassou - sempre que eu penso nessa expressão, me lembro da vez que eu comi o pão do mendigo hahaha #essediafoiloko. Voltando à Liniker: Com um talento lá da casadoscaraio, passou a rapa na geral e venceu. E subiu naquele palco onde uma pá de artista queria estar, pegou aquele gramofone na mão e disse que naquele momento, acontecia uma coisa incrível para o país dela.
Sabe o que me entristece nessa coisa toda? Acontecia uma coisa incrível no país dela. Aquele que existe dentro da cabeça sensível e criativa dela. Mas no país que ela vive, e que eu vivo, você e mais um monte de gente bronzeada vive, não aconteceu coisa nenhuma.
Era pra ter acontecido. Era pra ter ficado todo mundo orgulhoso, pra ser falado aos 4 ventos, favela venceu, a festa toda. Só que não. Saiu nos noticiários até meio tímido porque né? É o Grammy. Não tem como não noticiar. Entào que seja sem alarde.
Vai dar um grammy pro Chico Buarque feat. Tico Santa Cruz cantando "Mamãe eu quero mamar" acompanhado pela orquestra antitabagista dos tubos e conexões. Mês inteiro falando, orgulho nacional, show intimista no fantástico, desenterra tom jobim e o escambau.
Mas a nega trans, melhor varrer pra baixo do tapete logo. É feio.
Tou pegando pesado?
O exagero faz parte da retórica, bebê. O nome disso é Hipérbole, e a isso se chama figura de linguagem. Por aqui, gostamos muito. Gostamos MUUUUUITO, pra você entender como a figura funciona.
Pegar pesado mesmo é te fazer lembrar do Tico Santa Cruz a essa hora da matina. Desculpaê, foi golpe baixo. Aliás, só eu que acho que dava pra colocar o Tico Santa Cruz no Los Hermanos e tudo ia encaixar perfeito? Já pensou? Tico Santa Hermanos.
Hoje eu tou querendo perder amizade mesmo. Los Hermanos tb foi pesado.
Nada, fiz de propósito, só pra você ver como é que a gente tem uma porrada de preconceitos dentro da gente.
Eu varreria o Tico Santa Hermanos pra debaixo do tapete. Sem pensar meia vez. Se pudesse, varria pra baixo do tapete, varria até a China. Não, se mandar pra China é capaz de voltar via Aliexpress. Mas varria pra algum lugar bem longe. Caminhando e cantando.
Daniel, o preconceituoso que aprendeu a ouvir música com Beatles, adora Blues e toca guitarra, e acha que só isso que é música, sangue ruim que torce pra Anavitória tomar choque fazendo show descalça.
Anavitória assombra meu inconsciente. E olha que eu tou ouvindo Liniker no radinho aqui hein!
Tou te falando que vou perder amigos. Até o fim desse texto, eu perdi todos os meus amigos do Facebook.
Vou ser o perfil solitário do Facebook. Tirar foto pelado e o escambau. Não vai ter ninguém pra ver mesmo. Cicatriz pra todo lado. Falta um botão Unlike pra eu ter o único perfil negativo da rede. Zero amigos e menos sete likes.
Objetivo de vida. Acho que vou falar da Maria Rita, aí zera mais rápido. Outra chata.
Doidera essa coisa de preconceito. Daniel-sem-amigos é cheio deles.
Falando em doidera, já te contei do dia que comi o pão do mendigo? Esse dia foi loko.
Pega a visão (adoro essa expressão). Daniel 18 aninhos cheirando talco de bebê, garoto verão queimado de sol com bolha no pé, Bertioga mil graus tomando fora da mulherada, dançando axé à lá Romero Brito e jogando bola na praia, saboreando cada segundo daquele tempo bom que não volta nunca mais. Só que nesse dia era de noite (sempre quis escrever isso) e eu tava no caminho da balada, com 5 mangos no bolso e a missão de ficar bebum pra rir a granel.
A balada em Bertioga naquele tempo era uma rua. Uma só. Com mil pessoas. Cheia de botecos, então ficava todo mundo na rua mesmo. Essa coisa de vallet, couvert, entrada, chapelaria... nada, o esquema era bruto. Ia pra balada de cueca e bermuda. Não raro voltava sem um deles. Cueca, bermuda e mais nada. Nem chinelo eu levava que era pra não perder.
O cara põe no linkedin que tá procurando emprego e escreve um texto desses. Segue o baile.
E no meio da caminhada até aquela famosa rua, eis que me surge o tio do carrinho de batidas, e eu julguei pertinente fazer a roda da economia girar aplicando pesado naquele ativo. Agressivo, investi todos os meus fundos nos papéis da Rabo de Galo Inc. Esse papel sempre fechava o pregão em alta.
O fato é que eu tinha que aproveitar cada gole mínimo daquilo e torcer pra que cada mililitro atingisse o cérebro, bulbo e cerebelo. Não tinha dinheiro pra mais.
Foi quando eu ouvi um cara me chamando. Ali, sentado na guia, um mendigo sujão com uma mochila. Ele me pediu um gole do meu único rabo de galo. Aquele frágil copo de plástico que tinha como missão irrigar cada um dos meus parcos neurônios.
Naquele tempo eu tinha uma coisa meio antropológica experimental. Eu gostava - e ainda gosto - de escutar pessoas em realidades absolutamente diferentes das minhas. E conheci figuras geniais nesse jeitinho antropofágico de ser. Achei que seria uma boa sentar ao lado do matuto, escutar o que vida fizera com aquele ali e dividir com ele o meu pão. No caso, o Rabo de Galo.
Parece que a vida vinha judiando do meu novo amigo. O cara ficou muito feliz de eu estar sentado ali com ele. Quando eu dei o meu copo pra ele beber, o cara não conseguia acreditar.
É, amigo. Tá no inferno, abraça o capeta. Eu não ia cometer a indelicadeza de pegar outro copo. Não tinha covid naquele tempo pra usar como desculpa. Foi no bico mesmo.
Lá pelas tantas, emocionado por eu ter dividido o meu rabo de galo com ele, o cara levanta e tira a mochila debaixo da bunda, abre e tira um pão. Não foi o pão que o diabo amassou. Foi o pão que o mendigo amassou. Literalmente.
Orgulhoso, tirou uma lasca do pão e fez questão de dividir comigo. Afinal, dividi com ele a única coisa que eu tinha, que era o RDG. A única coisa que ele tinha era o pão.
Peguei na mão. Fiquei com dó de negar e chatear meu amigo. Putesgrila, eu sou um Lorde mesmo. Meio boca suja, mas sou um lorde.
Tava verde. O pão. Tava verde, o pão. Mofo, bolor. Uma colônia de fungos secos e molhados morando dentro daquele condomínio da vida natural na minha mão.
Eu comi.
Sabe que quando eu tava na UTI ano passado, tudofudido e com os prognósticos mais desanimadores que se pode ter ainda em vida, eu disse uma coisa pra Dra. Patrícia? Sabe o que foi?
- Eu sou imortal.
E contra as estatísticas, eu realmente não morri. E posso provar.
Eu já sabia. Desde os 18 anos, naquele dia. A imortalidade morava naquele pedaço verde de pão que saiu de dentro da mochila que o mendigo tirou debaixo daquela bunda que Deus sabe quando viu um chuveiro pela última vez. Ou um papel higiênico. E que eu comi. O pão, não a bunda, pelamordedeus não me entenda mal.
Liniker tá aqui no meu fone querendo que eu deixe ela bagunçar eu. Safada. Tô te falando pra ouvir a muié.
Junto conosco havia um alemão. Veio de intercâmbio curtir as férias no Brasil e passar o tempo inteiro dizendo pra gente que a alemânia tinha 5 mil anos de história e bla bla bla. Cara chato dozinferno.
Esse alemão devia ter lido um pouquinho de Hans Staden pra saber o que os índios da região faziam com comedores de salsichón.
Em certo momento, depois que a brisa do pão verde com geléia de bunda tinha passado, eu disse pro mendigo que o cara era alemão e que era um babaca e tal.
Um amigo que - desculpa, bro - eu não lembro quem era, sentou-se ao meu lado e viu o mendigo protagonizar a cena mais engraçada desde que o primeiro alemão inventou uma coisa esquisita na cozinha de casa e disse "Ora pois, mas isso é um salsichón HO HO HO HO HO". Ora pois nào me parece muito germânico, mas é assim que ficou. Você entendeu o espírito da coisa. Não sei o nome da figura de linguagem quando se bagunça a fala de um alemão com a de um português.
O mendigo achou por bem trazer o alemão à nossa roda. O alemão estava de pé bem ao nosso lado, comprando caipirinhas com o tio e conversando com as meninas, provavelmente sobre a confiabilidade e durabilidade de um volksvagen. E fingiu que não ouviu o mendigo.
Que não se permitiu não ouvir. Educadamente...
- Ô fio de Deus!
Nada do alemão.
- Ô, fio do Senhor!
Alemão olhou com desprezo. Virou a cara fazendo bico.
- Ô, seu filho duma puta!
Não sei o desfecho. Rolando no chão e gastando todas as células do meu corpo produzindo anticorpos, o Rabo de Galo fez seu trabalho e a partir daí, não lembro mais o que aconteceu naquela noite feliz.
Só sei que eu não morri.
Mas onde eu quero chegar nessa aventura alcóolica juvenil homeless lifestile? No preconceito, parça.
O alemão veio pra cá, pro Brasil. Trouxe na mochila paprika schnitzel e preconceito. Contra o povinho provinciano do país colonizado. Contra o mendigo, então? Não esquece de dar parabéns pra mulher preta trans que ganhou o prêmio hein! Ouve aí, ela merece esse prêmio e mais uma porrada de outros.
Ah, então certinho mesmo é o Daniel, que teve a empatia de sentar com um cara numa condição inferior e compartilhar o pão.
Nã nã ni nã nã. Eu também sou preconceituoso. Já te falei que eu queria ter aquele aspirador que aspira a casa sozinho, só pra escrever Um Pescadô tem Dois Amô bem grande com farofa na minha sala e ficar vendo o aspira ali sugar aquela merda toda. Odeio bossa nova. Não tem nem guitarra!!
Então onde você quer chegar com isso tudo? Pergunta o último amigo do meu facebook com o dedo coçando no DESFAZER AMIZADE.
Quero chegar em lugar nenhum não. Quero que tu pense. Tardiamente eu descobri que se a gente não pode mudar o mundo, a gente pode mudar a coisa toda dentro da gente. E é aí que tá o xis da questão.
Garçom, me dá um X-Questão (ou cuestão, como preferir. Não é hora de brigar por isso).
Se você parar um segundinho hoje e colocar seus preconceitos numa balança, tudo terá valido a pena. Pensa na proporção de cada um dos seus preconceitos. O quanto pode ser mau não gostar de gente que fala com sotaque X, ou achar que quem come aquilo é trouxa. Quais as consequencias disso pro coleguinha? O quão você pode tentar se colocar na pele do outro?
Tenho feito esse exercício direto. Só porque caiu uma ficha aqui que meu deixou cabreiro.
Sente o dilema: eu era uma pessoa verde e moribunda numa cama de hospital. Aí entrou pela porta um fígado de uma pessoa que eu não sei quem era, mas sabia que tava morta. Me abriram como a mochila do mendigo, tiraram de lá meu fígado verde, colocaram o outro e aqui estou eu: alive and kicking, escrevendo bosta e perdendo amigo.
E quem era esse cara que, morto, salvou minha vida? Eu não sei. Nunca saberei. Nosso sistema de transplantes não me deixa saber. Mas poutz... e se ele era viado? E se era viada? Magina que loucura? Uma mulher preta e trans salvando a tua pele branca da raça ariana européia paraguaia? Preto, azul, amarelo, roxo, alaranjado, índigo borboleta anil? Ah, não me diz que o cara era curintiano, essa é difícil de engolir... Bom, não sendo fã da anavitória, tá valendo.
Isso faz de mim a última pessoa do mundo a ter o direito a preconceito. Tudo bem que nunca fui muito chegado a isso mesmo, mas tenho pensado o preconceito em todos os sentidos que isso possa ter.
Pensa tb, amigo. De repente vc pode gostar de pensar sobre isso. Aí quem sabe uma preta trans que ganhou um prêmio vire uma coisa normal, corriqueira?
Acabou o disco da Liniker. Tá tocando Johnny Hooker. Pode ouvir que ele não é viada.
É viado mesmo.
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