Tente outra vez. Mas de verdade. Você tenta?

 Beba, amigo

Pois a água viva ainda está na fonte, e você tem dois pés pra cruzar essa ponte.

Tente outra vez.

No meio dessa madrugada, num tal momento que posso chamar exatamente de agora, acabei de escrever isso pra uma amiga na fila de transplante. 

É, eu faço isso. Convivo com muitos transplantados e candidatos a transplante, que são os que mais precisam de apoio, pois não entendem exatamente o que acontece com eles. A doença hepática é cruel com a mente da gente. Dá efeito colateral da sola do pé até a ponta do topete, literalmente. E vejo como obrigação mandar uma palavra positiva e um esclarecimento minimamente técnico pra acalmar o coração deles.

Hoje eu fiz isso mentindo.

Mentindo eu, que estou um caco. Ou uma coleção deles, esperando uma super bonder qualquer operar um milagre e me colocar de pé.

Tente outra vez? De novo? Mais uma? 

Às vezes eu me pergunto de onde sai a força pra dar força pra gente que tá com menos força que eu.

Aí eu me lembro do quanto eu estava forte, mesmo fraco, naquele idêntico momento em que está essa pessoa, e me intriga até de maneira séria o quanto eu estou fraco, mesmo forte, num momento tão distante daquele que a pessoa está passando.

A música diz "Não pense que a cabeça aguenta se você parar". Mas e se a cabeça parar?

A minha não anda muito legal, não. Confesso.

O nome disso é Transtorno Pós Traumático, e estou aprendendo a lidar com ele.

Sem nenhuma analogia poética, nos momentos em que eu sentia a vida desgrudando do corpo, eu me agarrava a duas músicas e levei cada uma como um hino.

Tente outra vez, do Raul e Three little birds, do Bob. 

Toda vez que a corda apertava pro meu lado nos longinquos tempos de internação, UTI e hemodiálises, eu pensava no que esses caras tinham passado ou pensado pra escrever tais letras e me sentia acolhido. O coração esquentava um pouquinho mais e vinha um tequinho de força a mais sabe lá de onde, mas de alguma maneira, vinha.

Pode parecer uma bobagem, mas você pensar que tem dois pés pra cruzar uma porcaria de ponte, quando na verdade você mal consegue respirar e pára de falar com as pessoas simplesmente porque não tem fôlego pra isso é o que eu consigo assimilar de mais próximo do ápice do otimismo possível. E eu fui otimista a este nível nos piores momentos.

Pois se passaram dois anos e meio do transplante, e eu sinto que não tenho mais perna nenhuma pra cruzar a ponte. Na real, eu nem ponte vejo.

É. Elis canta no meu fone agora que eles venceram e o sinal está fechado pra nós. Vai ver tá no vermelho e a gente tá insistindo na multa, né?

Esse texto vaia acabar aqui mesmo. Eu adoro escrever porque é assim que coloco meus demônios pra fora. 

Mas hoje, eles vão dormir aqui comigo mesmo.

Ao invés de força pra cruzar a tal ponte, hoje eu só vou torcer pra eles não roncarem.

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