O dia que o Michael Jackson caiu
Aqui pertinho de casa tem um açougue.
Tá. Pertinho da minha casa tem, da sua também, da casa da sua tia também e pelamordeDeus, tem açougue pra todo lado na doce levada de predador carnívoroTOP nessa cadeia alimentar que a terra há de comer.
Acontece que enquanto você, a sua tia e o resto da cadeia alimentar tem açougue e pronto, aqui nessa fatia mezzo inferno mezzo jardim do Éder chamada Cidade Ademar tem o Master Carnes.
Fazendo o comparativo básico, a distância entre o Master Carnes e a minha casa é praticamente a de meio campo de futebol. Só com uma ladeira. Fazendo um paralelo dentro do comparativo, é assim: Apita o árbtiro e o jogo começa, aqui na porta de casa. A meio campo de futebol está o gol, um lindo lugar que vende carne. Só que o gol fica numa ladeira. Quem já jogou futebol de rua sabe o que é atacar pro alto.
Trocando em miúdos: fica perto, mas o caminho é árduo. E porque vale a pena subir a ladeira? Porque lá no alto tem carne boa. E barata, o que é uma coisa rara hoje em dia.
Subir ladeira faz bem pros glúteos. Não que eu tenha interesse em ficar bundudo, mas fica aí o registro motivacional do dia.
O Master Carnes tem um dono. Claro. Depois da vitória de chegarmos ao topo da cadeia alimentar, criamos o capitalismo, que criou a cadeia da cadeia. Dá uma lidinha em Das Kapital e depois me conta o que tava escrito lá.
O dono do Master Carnes tem um nome e uma cara. A cara eu sei qual é, condiz com o tamanho da pança. Mas o nome eu não sei. Pelo tamanho da pança, vamos chamá-lo, hipoteticamente, de Sr. Barriga, com todo o perdão à memória de Roberto Bolaños.
Sr. Barriga é tipo um Washington Olivetto que deu ruim. Ele queria ser marketeiro, ter grandes idéias e exalar criatividade pelos poros. Mas a natureza, implacável, furtou-se de colocar o mesmo recheio no bolo intelectual do Sr. Barriga, então enquanto ele tem um açougue, o outro tem Alô Alô W/Brasil.
Já dizia o síndico: Na vida a gente tem que entender que um nasce pra sofrer enquanto o outro ri.
Apresentados os fatos, vamos ao acontecimento anual no qual me torno vegetariano por um dia: o Aniversário do Master Carnes.
Eu sou um consumidor fiel. Todos os dias, subo a ladeira, compro pão na padaria do Manoel Maluco, que por si só dá mais um post pra ser redigido outrora.
Depois compro as frutas a vencer do Sacolinho, uma mega sacada que só existe na periferia. Manja aquela fruta que tá boa, mas se você não comer hoje, ela estraga? No sacolinho eles embalam 4 ou 5 dessas numa bandejinha e vendem a R$2,45. Facinho comprar dois cachos de uva, uma maçã e duas bananas pra comer hoje por essa bagatela.
Eu também passo no mercadinho e compro a Pipoca Gasparzinho. Às vezes eu compro Emília, mas prefiro ser fiel ao Gasparzinho. Eu, como transplantado - e se você pensar no conceito da coisa, sou uma espécie de Frankestein mesmo, prefiro a pipoca Gasparzinho. Assombração com assombração se entende, parceiro.
Voltando à vaca fria na vitrine do açougue, eu sou fiel ao Master Carnes. Menos no dia do aniversário dele.
Esse é o dia em que eu me lembro de torcer com todas as forças pra esse canalha falir e nunca mais fazer uma festa de aniversário. E, revoltado mas fiel, me torno vegetariano por um dia.
Porque o sr. Barriga queria ser marketeiro. Porque o Master carnes fica a meio campo de futebol da minha casa. e porque no dia do aniversário do Master Carnes, quem toma bola nas costas é você. No caso, eu.
Não sei como funciona aí na sua quebrada, mas aqui na Cidade Ademar, o povo acha que marketing é uma batalha que se ganha no grito.
Andaram falando por aqui que marketing é a arte de chamar a atenção. O povo acreditou. E como chamar a atenção? Fazendo barulho, claro! Quanto mais, melhor. E se é aniversário do Master Carnes, amigo... Você não vai ouvir mais nada hoje. Vai vendo. Ouvindo. Sei lá.
"Olha lá, é hoje o grande diaaaaaaa..... é o aniversário sabe de quem? É aniversário do Master Carneeeeeeees".
Vai ser difícil descrever na forma escrita uma voz e suas nuances, mas você precisa entender o locutor do Master Carnes. Pensa num locutor com uma voz comum. Não é um Cid Moreira. É um cara com uma voz comum. Uma voz nasal pra caraios. Daquele tipo que se vc costurar a boca dele, o cara fala pelo nariz. É assim.
Agora pensa nesse carneeeeeeeeeees. Mas não com aquela entonação eloquente, ritmo de festa ilariê. Nada disso. Pensa no desânimo da pessoa que vai passar o final de semana inteiro repetindo isso e já está se economizando as 7 horas da manhã.
Que horas?
7.
Da manhã.
Sábado.
Acordei com a anasalada e desanimada informação que o kilo da rabada estava a R$23,90. Como taurino que sou, babei no travesseiro.
E antes que eu pudesse dizer "mas o que esse fia das cabra tá gritando as 7 horas da manhã num sábado?", o som cessou. É, amigo, na periferia o sistema é bruto. E no quesito brutalidade, tem gente na vizinhança que sabe mesmo ser convincente.
Passados alguns minutos, acordo firmado, o som voltou. Baixinho, quase imperceptível.
Aí que mora a magia do marketing do Master Carnes. Enquando você dorme, aquela narrativa malemolente vai entrando na sua mente. Hipnoterapia a serviço do business.
Voltei a dormir, embalado tal e qual um bebê sonhando com a teta provedora, sonhei com picanha, fraldinha, acém, miúdos de frango (é, amigo, nem tudo são flores).
10:01 e o som dá um pulo. Acabou o acordo com a vizinhança. Agora é pra valer. Prepara aquela dose extra de paciência que hoje é dia de festa.
Caixa de som e o narrador anunciando as ofertas. Prometendo pra hoje a presença do Homem Aranha, Rei Leão, Michael Jackson e da musa da Cidade Ademar, a exuberante Vera Verão!!
Puta mix, né não?
De repente a notícia avassaladora: Algodão doce grátis pras crianças.
Pegou pesado. Sério mesmo, isso me lembra aqueles políticos das antigas pegando criança no colo pra aparecer na TV. Jogo baixo total. Pra mim, ficou o sabor da derrota na boca. Eu SABIA que molecada da quebrada ia pirar geral na orelha de pai e mãe, e o diabo do Master Carnes ia lotar. Ou seja: sucesso e ano que vem teremos aniversário de novo.
Planejamento a longo prazo é isso. Torcer no aniversário desse ano pro cara quebrar e não haver aniversário no próximo ano. Mas quem quebrou fui eu: a cara. Master Carnes lotou, sucesso total.
De repente, barulho de caixas rufando. Foi um momento legal, me lembrei de quando era menininho e tocava caixa na fanfarra da escola. Momento este sumariamente interrompido pelo anúncio da chegada do trio: Homem Aranha, Rei Leão, Michael Jackson e Vera Verão?
Mas são 4. Que trio? O elétrico.
Dessa vez, o Washington Olivetto do marketing popular se superou. Um trio elétrico. E eu, de casa, só ouvindo. Ainda não estava preparado pra enfrentar tudo isso, no que tange as minhas faculdades mentais.
A partir daí, várzea se instalou. Música do He-Man (??), música da Xuxa, música do Michael Jackson (essa parte foi legal, admito).. de vez em quando, o locutor tentava entrevistar pessoas na fila ou transeuntes. Quase ninguém respondia, uma farra. Só as crianças.
Bom, chegava a hora do meu almoço. Eu jamais enfrentaria o caos sob tormenta, tufão e terremoto, instalados no interior do açougue. Por isso o vegetariano dentro de mim julgou melhor direcionar minhas energias ao sacolinho. E a uma dose extra de Pipoca Gasparzinho. que se dane o nível de açucar, hoje eu mereço.
Acontece que o Master Carnes fica bem de frente pra minha rua. E se eu não passar bem na frente dele, eu não vou no sacolinho, nem no mercadinho, e nem na padaria do Manoel Maluco. Ou seja, não vou a lugar algum.
Diante da falta de outras perspectivas, fazer o que? Respira fundo, cumpadi, e enfrenta a fera.
Abri o portão de casa a cena que eu imaginava se concretizou. Pesadelo resume.
Logo de pronto, ficou claro que o trio elétrico havia sido uma péssima idéia. Ponto pra mim, esse eu tenho certeza que ano que vem, não terá.
A Avenida Professor Paulo Mangabeira Albernaz é uma rua movimentadíssima, mas estreita. Por onde passam enxames de motoqueiros, enxames de pedestres (incluindo a mim), carro, carroça, bicicleta, caminhão e logo à frente temos o ponto final do Vila Império. Aqui só não pousa avião, porque até disco voador deve passar de vez em quando.
Mas o fato é que o trio elétrico teve que ficar coladinho na calçada. No alto do trio, duas garotas bem bonitas dançavam sem vontade. Manja quando o business fecha a conta direitinho? Tipo assim, cê tá me pagando trintão pra eu dançar de biquíni no alto do trio? Então vou te entregar uma dança de trintão.
Entre elas, uma travecona enorme de biquíni fazia o seu show. Cara, numa boa? Engraçado pra caraios esse show. Pessoa boa, com energia e um timing de comédia perfeito? O caminhão parado no meio fio fazia dos 3 lá no alto ficarem desviando dos fios do poste (tou falando que o trio elétrico não foi uma boa idéia), e a traveca Vera Verão fez piada todas as vezes. "Ai meu Deus, troquei o canal da tia do 23". Cara, eu ri.
"Olha o gato! (e fazia barulho de gato)". Mas não era o gatinho, o bichano.. Ela apontava o poste hahahaha.
Homem Aranha e Rei Leão desceram para o deleite da criançada. Homem Aranha desbotado tentando disfarçar a genitália. Normal.
O Rei Leão, um show à parte. A fantasia um dia fora felpuda. Agora não passava de um cobertor velho surrado. Sujo, complicado lavar aquela pelança toda. O cabeção do Rei Leão lembrava vagamente algo felino. A língua pra fora me fez recordar do filme e confesso não ter lembrado de nenhuma cena em que o Mufasa tenha sorrido e botado a lingua pra fora ao mesmo tempo. A magreza do Rei que habitava aquela fantasia era de dar dó. Rei Leão de havaiana no pé. Mas a criançada tava pirando, então sucesso. O Rei Leão não tava lá pra ser legal pra mim, mas sim pra criançada. E não dá pra negar que nesse quesito foi missão cumprida.
Nada do Michael Jackson.
Bom, comprei couve, bandeja barata com frutas, cebola, tomate, salsa, pipoca gaspar e bora pra casa. Mas pra isso, passar na frente do Master Carnes de novo era necessário.
A trilha sonora havia melhorado consideravelmente, embora o volume fosse de se ouvir da estação MIR. Definitivamente, Whos Bad é muito, mas muito melhor do que beber, cair e levantar. Meu gosto, não se ofenda <3
Na pequena faixa que sobrou entre o trio e a porta do açougue (sem trio elétrico ano que vem, pessoal), o Michael Jackson fazia seu show.
Moleque bom, parceiro. Bom mesmo. Eu, com o coração cheio de raiva torcendo pra arriar a bateria do trio e pegar fogo no Master Carnes, parei pra ver.
É nessa hora que a gente reflete sobre o tanto de gente talentosa que anda por aí, vivendo de bico e desperdiçando seu talento em aniversário de açougue.
Figurino surrado, mas bem de acordo, luvinha branca surrada, meia branca, cabelo comprido cheio de algum creme que deixava molhado, maquiagem feita com cuidado. Dava pra ver que diante do que ele podia fazer, o moleque fez milagre. E dançava muito, muito bem.
Só que a vida judia da gente que é pobre.
Pensa naquele artista que não é da sua preferencia e tudo dá certo com ele, porque tem um respaldo da vida. Faça esse exercício daí que eu faço daqui. Eu, particularmente, detesto uma dupla de meninas que tocam uma musiquinha chatinha - uma igual à outra, tanto as meninas quanto as músicas - descalças e com violão colorido.
Toca descalça e toma choque no microfone? Não. Nunca tomou. Nem no microfone nem fora dele. Porque tem RESPALDO. Até nominho que dá trocadilho elas tem.
Agora pensa no nosso Michael Jackson. Qual o nome dele? Ericlépison? Vai arrumar um parceiro Diélson e vai virar o que? Anavitória que não é, né? Michael Jackson não precisa tocar descalso. Michael Joackson toma choque DA VIDA.
A vida judia de quem é pobre, amigo.
E nessa da vida judiar, o Michael Jackson caiu. Tropeçou na calçada e caiu, bem na minha frente.
Alô Subprefeitura da Cidade Ademar!! Arrumá os buraco aí, rapazeada!! Tá dando nem pra cidadão de bem fazê o seu moonwalkie em paz aí!!!
Eu dei a mão pra ajudar. Ele levantou, olhou pra mim e agradeceu.
Impávido que nem Muhammad Ali, tranquilo e infalível como Bruce Lee, o Michael Jackson nem se abalou. Tropeçar nos buracos da vida já deve ser corriqueiro ali.
Antes que ele desviasse a atenção, falei rapidinho: "Parabéns, cara. Tu manda muito bem!". Arte tem que ser valorizada.
Ele sorriu, sacudiu o paletó e continuou, como se nada tivesse acontecido. Continuei ali, assistindo.
Alguns passos depois, ele baixou num espacate, apontou pra mim com todo o trejeito que o personagem exige e falou:
- Alcatra tá barato.
Nesse dia, caiu um mito. O do vegetariano por um dia.
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