Hoje é o seu dia, que dia mais feliz!!

 Sempre fui festeiro. Desde a adolescência, quando comecei a ter meus primeiros pinguinhos de autonomia, o lance era ver a casa cheia, todo mundo feliz, bebida a rodo - e consequentemente todo mundo bêbado - aquele clima. Ritmo de festa, já diria o Sr. Senor, também conhecido como Abravanel. 

Porta da Esperança pra mim era aquela por onde não parava mais de entrar gente, amigos e amigas, no mais puro sentido da expressão "quanto mais, melhor". Buscando aqui na memória, fui responsável por festas memoráveis. Do tipo que ainda são lembradas 20, 30 anos depois. Sem exagero 🙂

Tá, acabou o saudosismo. A idade foi chegando, a quantidade de festas também, e a quantidade de boletos junto com a diminuição da energia abundante na adolescência foram o sufuciente pra dar uma boa freada nesse ímpeto Luis XIV, XV, XVI e se pudessem, ainda haveria algum Luis MMXVI dando festas regadas a champenhe e champinhom lá na França. 

Eu faria essa festança toda. Daniel I, que tal? Embora creia que neste ritmo, o inevitável Transplante de Fígado, nosso principal assunto por aqui, teria acontecido mais cedo. Sem Hospital Albert Einstein, sem Pedreira, sem enfermeira Fernanda, David, Vanessa, Beth, Léo, sem a fabulosa equipe do Dr. Marcelo, sem o zeloso acompanhamento da Dr. Patrícia e enfim.

Como "Se não há pães, que comam brioches" era a regra vigente naquele momento, fatalmente eu teria sido submetido a alguma pajelança e não estaria aqui, para verborrizar falácias como esta.

*** Entra na carruagem no século XVII e desce no 677-T Dom Gastão / Jardim Miriam aqui no ponto da Cidade Ademar, sr. Daniel ***

O fato é que as festas já não vinham mais na minha vida com aquela força toda. A tendência era que fossem diminuindo até que chegasse o meu aniversário e eu recebesse os parabéns dos mais próximos e bola pra frente.

Mas a vida não precisava exagerar assim, né? Veste o chapeuzinho e cuida dessa sua língua de sogra, porque nem Vossa Majestade vai acreditar no que eu vou contar: Eu tive a mais inusitada festa de aniversário da História.

Volta pro Jardim Miriam 677-T e desce em 2021. Aproveita que o Bilhete Único ainda tá valendo uma corrida só.

Acompanha no calendário.

No dia 3 de maio de 2021 eu tive alta do Hospital Geral da Pedreira. Não porque eu estava bem ou algo parecido. Eu estava péssimo. Mas porque no Pedreira não tinha sequer um hepatologista, imagina então fazer transplante de fígado. E lá no hospital até o tio da pipoca sabia que meu caso era pra transplante. 

Então negociamos uma data para a minha alta, uma vez que as tratativas com o pessoal do Einstein já estavam em curso, e eles precisavam me analisar pra dar entrada lá. Ficou combinado que eu teria alta do Pedreira dia 3, e minha entrevista no Einstein seria dia 5. Aí meu estado de saúde diria como funcionariam as coias dali pra frente. E como ele estava absolutamente precário, era praticamente certa a minha internação. 

Tudo combinadinho e bonitinho, certo? Errado, claro.

Acontece que eu dei entrada no Pedreira quase morto. A brilhante equipe do Pedreira fez das tripas um figão (ops, piada sem graça) só pra me colocar de pé de novo. E passaram 19 dias lutando brava e incansavelmente pela minha vida. Meus mais sinceros agradecimentos e gratidão ETERNA a essa equipe. 

Então nos últimos dias, com tudo combinado bonitinho, eles foram diminuindo a quantidade de nora-adrenalina (sim, é isso mesmo o que vc tá pensando: adrenalina é a super bonder da alma. Umas gotinhas por dia a alma não descola do corpo nem com aguarraz). Depois me mandaram pra um quarto na enfermaria onde eu ficaria mais 2 ou 3 dias, até que o fisioterapeuta dissesse que eu estava bem pra sair pela porta - pelo menos - parecendo um ser vivo. 

Como já descrevi no post sobre o Mendigo, a Enfermeira e o Enfermo (https://transplantado.com.br/a-enfermeira-o-mendigo-e-o.../), no Pedreira não existia um fisioterapeuta. Não para os doentes da enfermaria.

Então recaptulando: Eu negociei uma alta que eu não deveria receber, e estava sem tratamento de UTI numa enfermaria, com um compromisso do qual minha vida ou morte dependiam, aguardando o aval de um médico que simplesmente... não existia. 

É o pior dos roteiros da Caverna do Dragão, pra quem lembra do desenho. Pra quem não lembra, tem um vilão que tem um cavalo e voa. Só que o cidadão que voa 

e ele, e não o cavalo. Então quando ele levanta vôo o cavalo vai junto, sugerindo que eles estão acoplados pelo sentador do vilão. Ou que ele tem pernas muito fortes, como sua imaginação sugerir.

Fora o fato de que ninguém comunicou aos médicos do Pedreira que eu tinha que sair pra dar entrada no Einstein. Então funcionava assim: qualquer médico que entrasse pela porta do quarto já recebia um pedido de alta na base do desespero. sem exceção, todos eles diziam que era pra eu estar na UTI e não ali. E o tempo passava e nada a alta.

Até que, no último dia, veio o Cafu. Levantou a camisa 100% Jardim Irene e, embora boliviano (o médico, não o jogador), lembrou que estávamos 100% na Cidade Ademar, mas não sem antes lembrar que conhecia um médico lá no Transplante do Einstein, se solidarizou - e foi o único que acreditou - com a minha história e me deu a alta que eu tanto precisava. 

Dr. Cafu, o boliviano, era muito, mas muito parecido com o Cafu. E ele adorava que a gente fizesse a comparação. Boa gente, o doutor. Ainda bateu um longo papo conosco enquanto aguardávamos a papelada, auografou a minha alta e saí de lá a tempo.

Não preciso dizer que a enfermeira Vanessa me levou até o estacionamento na cadeira de rodas, me sentou cuidadosamente num banquinho perto de umas plantinhas e me disse doces e encorajadoras palavras antes de partir. Também não preciso dizer que chorei como um bebê sentindo o calorzinho do sol batendo no meu rosto, algo que eu realmente achei que não fosse ver mais. E também não preciso dizer que abri a janela do carro da minha mãe e vim até em casa me comportando como um labrador, tamanha a emoção de sentir o ventinho batendo no rosto. Isso tudo tá escrito, de outra maneira, lá no post que linkei acima.

Cheguei em casa. A sogra chorou quando me viu. O gato chorou quando me viu. eu chorei quando vi que minha linda e amada Aryadne tinha feito, com as próprias mãos, uma pequena reforma em casa pra me receber. Coisa pouca, apenas o que ela conseguia fazer. Mas o suficiente pra me deixar muito, muito emocionado. Além de segurar todas as broncas que ela já segurava, ainda arrumou tempo e disposição pra arrumar a nossa casinha pra minha volta. Obrigado, linda. 

O dia 4 de maio foi tranquilo, ou pelo menos ao que me lembro. Comi toda a gelatina que ela havia feito pra mim, comprei um pote de sorvete de morango e comi inteirinho, fui no banheiro me livrar de toda a amônia que poderia ter na minha cabeça e fiquei preso na privada, sem força pra levantar de lá. Gritei HELP I need Somebody HELP e somebody veio me tirar de lá... apenas um dia normal na vida de uma pessoa sem fígado.

Peguei meu telefone e comecei a ligar para as pessoas. Pra matar a saudade, e também pra dizer que eu estava vivo. Pai, mãe, meus filhos, alguns amigos... Até que liguei pra minha irmã.

Foi quando ela apareceu. Não a irmã, mas a crise de encefalopatia. De repente Aryadne entrou na sala. Eu segurava o telefone e repetia: "mas então... mas então... mas então... mas então... mas então... mas então... " repetidamente, com os olhos vidrados.

A crise me pegou. não deu trégua. Amônia acumulou no corpo, subiu pro cabeção e pimba: fiquei mais louco que o bátima.

Aryadne me cobriu e me colocou pra dormir ali mesmo, no sofá. Dia seguinte, tinha que estar no Einstein pra uma avaliação. De repente a crise passava, a gente nem sabia muita coisa a respeito dessas crises ainda.

Eu, completamente inconsciente. Certamente estava em alguma viagem estelar, astral, aérea, rodoviária ou sei lá o que. Mas ali, na sala, dormindo, eu não tava não.

6 da manhã e nada de eu melhorar. Dessa vez, quem mandou o HELP foi a Aryadne e o somebody que chegou foi minha mãe com o marido dela, e um poderoso bólido que, por um trâmite burocrático, me levaria à UPA da avenida Santa Catarina, até que o Einstein de lá me resgatasse.

Acordei meio dia, amarrado, numa maca infantil e debaixo da saída de um forte ar condicionado. Fiadascabra, esse pessoal da UPA. Tudo isso pq eu estava tão doido, mas tão doido, que eu tentei socar um médico de lá. Imagina só se eu seria capaz de fazer uma coisa dessas. Tá muito, muito longe da minha natureza.

Bom, vou pular o rolê de ambulância e direto pro Einstein.

Cheguei lá amarrado, e passei umas boas horas pra entender onde que eu estava. Eu ficava deitado pro lado esquerdo, porque achava que à direita da maca estava estacionada a ambulância com todo o pessoal da UPA prontos pra me levar de volta. Fiquei horas assim, até que a Dra. Patrícia (sim, essa que cuida de mim hoje) veio conversar comigo. 

Me desamarrou, explicou que ali era a UTI do Einstein, que ficava no quarto andar e não tinha nenhuma ambulância ali, etc e tal. Não houve entrevista, não houve burocracia. Aryadne ligou pra Dra. Amanda, e de repente eu entrava no Einstein direto pela UTI. Relaxei, estava onde tinha que estar. Dormi tranquilamente, sob os cuidados do pessoal do Einstein que bom... acho que não preciso dizer aqui o nível de qualidade aplicado ali, né?

Acordei cedíssimo. Aliás, se você nunca esteve numa UTI, além de ser ser uma pessoa de sorte, você não sabe o que é não dormir. Você fica plugado numa máquina que apita 3 sons diferentes dentro de um segundo. O seu vizinho da esquerda também, e o vizinho dele também. Assim como o da direita e etc. Uma barulheira dozinferno, enfemeiro mexendo em vc o tempo todo, gente estribuchando, maca andando pelo corredor, é muito, muito agitado.

Assim que acordei, me dei conta de que estávamos no dia 6 de maio, e dia do meu aniversário de 44 anos. Pra um cara que sempre valorizou o próprio aniversário, que fez festas homéricas a vida toda, era surreal passar o seu dia numa UTI.

Foi então que tomei uma decisão que me acompanhou por todo esse processo: Tou na UTI? Sim, está. Então eu vou fazer disso aqui a melhor estadia em UTI que eu puder fazer.

Eu não conhecia ninguém lá, tinha acabado de chegar. Mas mesmo assim, soltei o Daniel que existe dentro de mim. Cada um que chegava ao meu lado já era informado: "Hoje é meu aniversário, me dá os parabéns aí". E com isso acabei ganhando de imediato a simpatia de todo mundo lá. Enfermeiros, médicos, todo mundo vinha me dar os parabéns. 

Alguém me perguntou onde estava meu celular. Disse que estava em casa, pois no Pedreira não era permitido usá-lo na UTI. Pediram o nome e telefone da minha esposa. Com o pretexto de ligar pra ela trazer meu telefone.

Acabei dormindo após algum remédio, ou qualquer procedimento. Na UTI a gente fica frágil pra caramba e ainda não dorme direito. Acaba que vc capota toda vez que te dão um pouquinho de sossego.

Não sei precisar quanto tempo depois, uma enfermeira veio me acordar.. Dani... Dani.. acorda um pouquinho...

Abri os olhos e ela puxou a cortininha que separava a minha UTI das outras, e eu não podia acreditar no que eu estava vendo. A equipe de enfermagem toda de óculos de coraçãozinho e chapéu de festinha de criança, cantando parabéns pra mim, acompanhado de palmas de alguns outros pacientes que podiam se mexer e tal. O quarto todo adornado de bixigas, e, acreditem, um BOLO nas mãos da orgulhosa chefe da cozinha, que tinha preparado um bolo que não feria a minha dieta à base de comida ruim e um pouco de gelatina.

Mas não parou aí. No meio do parabéns surge o meu amor, minha esposa Aryadne, de touquinha e macacão, sorrindo por trás daquela máscara anti-covid. Ela não apenas pode entrar na UTI como também lhe foi permitido chegar perto de mim. 

Nos deixaram uns minutinhos juntos. Nunca saboreei um bolo tão gostoso em toda a minha vida. Não conseguia acreditar que eu acabara de ganhar uma FESTA NA UTI. Não conseguia acreditar que tinha ao meu lado a minha linda Aryadne... Que incrível!!! A essa altura, eu tinha total consciência do nível de risco que eu corria, então pude comemorar cada segundo daquele tão curto quanto intenso momento de aniversário, literalmente como se fosse o último.

Há poucos dias, esse momento tão importante fez um exato ano. E nos últimos dias, tenho ficado mais introspectivo, pois me lembro bem do que passei am cada um dos dias que fazem aniversário nesta época. Aprendi a enxergar as coisas, as pessoas, as atitudes, a mim mesmo sob outro ângulo. Entendi que uma festa no castelo pra 5.000 convidados pode não ser melhor do que uma festa na UTI com bolo de laranja. Dizem que isso faz parte das experiências de quase-morte. Que bom, então. Porque eu estou me sentindo muito bem com isso tudo. 

Sou totalmente ciente de que recebi um milagre e dos grandes. E ciente que essa nova vida não é somente minha. E tenho que retribuir a luz que me trouxe de volta, levando luz à frente de alguma maneira. Assim o farei.

E o Rei? Morreu foi decapitado mesmo. Talvez se tivesse apreciado o sol através das janelas do castelo, poderia ter visto as coisas sob outro ângulo, e aí ninguém iria querer cortar sua cabeça... O meu castelo não tinha janelas, apenas aparelhos, tubos, soro, sangue e agulhas. Mas na minha festa, aprendi que tem o Sol brilha bem bonito dentro da gente também. 

É sobre sentir ele brilhar.

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