Hemodiálise. Sem stand-up, sem comedy

 Há alguns meses atrás, houve um comediante desses de stand-up que fez uma piadinha sobre o tio que gostava tanto de hemodiálise, que se não fizesse todos os dias, ele morria. Eu fiquei louco, irado, emputecido com a piada do cidadão. Como uma pessoa dorme em paz depois de ter ofendido tanta gente num momento tão frágil?

Na minha simples, rasa, ranheta e ranzinza opinião, o stand-up é um dos tipos mais estúpidos de entretenimento, atualmente. Consiste num cidadão de barba e cabelo alinhados num "barber shop", usando roupinhas descoladas, fazendo uma platéia rir de pessoas que não estão lá pra se defender.

Chris Brown que o diga. Não atentou para o fato de Sr. E Sra. Smith estarem no recinto. Meu amigo Will, como um lorde, ensinou esta lição ao nobre rapaz. Mas como nem todo mundo odeia o Chris, o maluco no pedaço está sendo massacrado por defender a sua família do humor estúpido. Difícil entender. Mas é o mundo moderno, onde é preferível machucar uma mulher doente fragilizada do que sapecar no pé do ouvido de um homão.

Falta pra esse pessoal um pouco de quebrada. Periferia mesmo. Aqui na Cidade Ademar, por exemplo, tem um tiozão que anda por aí bastante mequetrefe com a cara toda ferrada. Basicamente, o coleguinha acariciou  a face de outrem com uma marreta de pedreiro. Outrem esse que achou justo e correto se meter com a esposa do alheio. Tal e qual o menino da luva de pedreiro, o tal alheio gritou RECEBA e pumba! Marreta vai, marreta vem e banguelou-se outrém. Por aqui a banda toca assim: olho por olho, marreta nos dentees. Ninguém foi cancelado, ninguém perdeu seguidor e muito menos patrocínio. Apenas os dois envolvidos não mais compartilham do mesmo lado da calçada. E ficou claro ser um mau negócio se meter com a mulher do marreta de pedreiro. Ponto, acabou aí.

Definitivamente, Chris Brwon fez a piada errada no lugar certo.

Na maior parte dos casos. Porque há sim expoentes e exceções, como em todas as profissões, esportes, vertentes políticas, expressões artísticas e afins. Gente muito boa, capaz de fazer qualquer serumaninho rir sem ofender ninguém. Marco Luque é genial, por exemplo, e nunca o vi ofender ninguém.

Voltemos ao caso do humorista mais sem graça da internet aqui de casa. O cara cujo tio faz diálise.

Amigo... ops! amigo, não. Um cara que faz esse tipo de comentário, piada ou pensa uma merda dessas jamais seria meu amigo. Então vou recomeçar a frase.

Ô babaca, larga mão de nutelice atrás do seu microfone e dá um pulinho numa clínica de diálise. Gasta 15 minutos conversando com as pessoas que precisam desse procedimento médico. Se você conseguir encontrar um único paciente que gosta, ou acha razoável fazer diálise, eu prometo que compro um ingresso pro seu próximo show. Compro o ingresso, mas não vou.

Eu estava há dias sem mijar. Médico preocupado, enfermeiros preocupados, eu preocupado, familiares e amigos. Destes últimos, apenas alguns sabiam realmente o quão era perigosa a situação que eu me encontrava naquele momento. Sempre que me comunicava com eles, tentava passar uma mensagem positiva, de bom astral. Não pra esconder ou enganar alguém, nada disso. 

Isso dá assunto pra outro texto, mas eu REALMENTE precisava do apoio de todos, do pensamento positivo de cada um. Não sei explicar ao certo, mas a cada vez que um amigo dizia que rezou por mim, ou pensou com carinho, ou vibrou positivamente, seja qual fosse a manifestação: eu realmente sentia aquilo. Chegava aos meus ouvidos que um amigo das antigas tinha mandado um abraço. Eu sentia um pouco mais de força no coração. E cada fiozinho de força era necessário pra mim naquele momento.

Então eu retribuía sempre que possível com positividade também. E por que a resposta que eu queria tinha que ser naquela energia. Queria as pessoas pensando em mim com o sorriso no rosto. Não com dó. Não com medo, receio. Jamais com a sensação de perda. 

Então eu não podia contar pras pessoas: "Olha, meus rins pararam de funcionar, eu não mijo há dias e estou inchado como um teletubbie. Ah, meu fígado está a ponto de parar também, e se isso acontecer, eu terei apenas mais algumas horas de vida". Aconteceu. Mas apenas quem precisava saber disso reaalmente soube. Para todos os outros, a realidade era:

- Dani, vou rezar por você.

- Obrigado, amigo. Aproveita e pede pra eu mijar

- hahaha pode deixar.

"Hahaha pode deixar" foi o meu alimento. Alimento da minha alma. Eu realmente usei essa energia que, junto da minha, me colocaram aqui em casa, bem, forte (marromeno) e escrevendo isso aqui pra vocês. Meu agradecimento sem fim a cada pensamento positivo em minha direção.

E com isso eu criei a corrente do xixi. Um monte de gente torcendo, literalmente, pra eu mijar. Até foto de poste eu recebi no whatsapp. É... amigo cachorro. A gnte vê por aqui.

A corrente do xixi me fez muito bem à alma. Só que naquela altura desse campeonato, corpo e alma já não se conversavam lá muito bem. E o corpo não entendeu, e o nefrologista entendeu melhor ainda. O médico que cuida dos rins, se a sua dúvida era essa, me mandou pra diálise. Dia sim, dia não. 

Dr. Nefro (me perdoe, não me lembro o nome dele. E mesmo com a encefalopatia, eu fiz um esforço descomunal pra lembrar o nome de todo mundo que cuidou de mim. Respeito e admiração. Sorry, dr.) entrou no quarto, sentou ao pé da minha cama e me contou como seria o procedimento. 

Hospital Israelita Albert Einstein, o local onde os médicos gostam de explicar pra um paciente curioso sobre os processos, os porques e as consequencias de tudo. Adoro!

Enquanto ele me explicava, eu ia reunindo dentro de mim as forças que tinha pra enfrentar mais essa. Pensava naquele parente, na voz embargada do meu pai ao telefone, no carinho de cada um, na voz doce da minha filha me chamando de "papá", somava mais um fiozinho de vida que eu guardava lá na gaveta do fundo do armário, pensava nos meus filhos, na minha esposa, na minha enteada, em todas as pessoas que me demonstravam tanto amor e montava dentro de mim um "pacote". Tipo o combo com sanduiche, batata e refri. Só que contendo as forças que eu conseguia reunir. 

E falei: Beleza, Doutor, vamos pro pau. Se é pra começar, vamos AGORA. 

Em todas as situações que dependiam de força, risco, dor ou algo do tipo eu fiz assim. Sempre a mesma coisa: um minutinho de reflexão e "vamos pro pau AGORA". Nunca neguei nenhum remédio, nenhuma injeção, nenhum procedimento, nada. Caí de cabeça na missão de sair vivo daquele pesadelo. Independente do que eu fosse passar, ficar vivo é melhor do que não ficar. E o vamos AGORA tem seu motivo simples e claro: vai ser foda. vai doer. vou ganhar mais uma cicatriz. Antes da cicatriz, mais um rasgo no corpo. Então eu não me dava nem o tempo de pensar. E de desistir. Eu me recusava a me entregar, e se eu desistisse de uma única aspirina, eu daria o primeiro passo na direção da derrota. Eu poderia ser derrotado sim. Mas não por mim. 

** Totalmente fora do texto, mas nada fora do contexto: Neste exato momento, 5:56 de uma manhã de segunda, eu estou de fone ouvindo um blues no volume mais alto. A música que toca agora diz assim:

"Às veze me pergunto

Será que existe luz no fim do túnel? Parece estar longe de mim.

Se ontem eu sonhava... hoje não consigo nem mais dormir." 

Big Bat Blues Band, banda brasileira fazendo blues da melhor qualidade.

**

O AGORA veio a galope. Num piscar de olhos, eu estava numa sala de cirurgia, e em poucos piscares de olhos eu já tinha um cateter do tamanho de um lápis de cor literalmente enfiado na minha coxa direita. 

As sessões foram sempre às 6 da manhã, religiosamente. Fiz 15 ou 16 delas. Ou 20, sei lá. Não me lembro, mas foi o suficiente pra virar uma desagradável rotina.

Nos dias de diálise, o pessoal da cozinha mandava meu café as 5 da manhã, e não as 8, como normalmente. Então eu acordava perto das 4:30, me preparava e saboreava meu café com um prazer inenarrável. O Einstein não sabe brincar: 2 tipos de pães, requeijão, manteiga e geléia, muffin, fruta, iogurte, suquinho, café e leite. Não tem como não saborear.

6 horas e o menino do transporte chegava com a cadeira de rodas pra me levar. O frio que eu sentia era desproporcional, talvez por conta da fraqueza, talvez pelos remédios. O Anderson era um estudante de enfermagem. Pra pagar os estudos, levava os pacientes numa cadeira de rodas de um lado pro outro do hospital. Menino do bem, sempre me ajudava a descer da cama, me enrolava nos cobertores, punha o chinelo no meu pé, e pegava o meu travesseiro. Conversa boa às 6 da manhã, e me entregava na sala da diálise. 4 horas depois voltava pra buscar os meus cacos, com o mesmo carinho e cuidado, todos os dias de diálise. 

Pequenos alentos que fazem coisas difíceis ficarem mais fáceis. Gente do bem trabalhando em cuidar de gente que precisa de gente do bem por perto. Valeu, brother. Vais ser o melhor enfermeiro do mundo, menino. Que seja também o mais feliz deles.

Na sala de diálise, as meninas separavam pra mim a maca mais baixa. Eu tinha uma lesão na coluna por tanto tempo deitado. Além do fato de não ter força nenhuma, ou muito pouca. 

Me lvantavam da cadeira, e era hora da pesagem. Pesava-se antes e depois, e com isso a conta de quanta sujeira do sangue a sessão conseguira retirar. 

Eu fazia daquela pesagem o primeiro desafio do dia. Porque eu queria tentar andar da porta da sala até a balança. Uns 5 metros mais ou menos. Só que eu não tinha força, então precisava ir, literalmente, abraçado com alguém. 

Toda vez a mesma piada besta: "Quem vai ser minha namorada hoje?". Podia ser médico, médica, enfermeiro, enfermeira. Quem me acompanhava naqueles 5 metros, era meu par naquele dia. Ganhava coraçãozinho com a mão e eu te amo kkkk. Nesse período eu amava todo mundo que cuidava de mim. E fazia questão de dizer sempre, pra que soubessem da minha gratidão.

De novo, tentando fazer mais fáceis coisas difíceis. 

Numa dessas vezes, uma senhora que fazia diálise na maquina ao lado da minha disse: "Pena que eu não posso, Dani". Virei pra ela, fiz um coraçãozinho com as mãos e quase caí. Mas era a brincadeira boba que trazia um sorrisinho pra todo mundo ali naquela sala tensa. Leveza, amigo. A melhor maneira de superar um momento fudeu.

Voltávamos da pesagem e eu deitava na maca baixa. As meninas me cobriam com 3, 4 cobertores. E o meu travesseiro. Eu deitava de lado e ficava abraçado ao travesseiro.

Numa das sessões, uma das enfermeiras perguntou porque eu levava meu travesseiro se havia outros lá. Respondi sem pensar, e não sei porque respondi "Isso aqui é a minha família". Pronto, virou mais um momento leve de todas as sessões. Olha aí, o Dani trouxe a família dele pra diálise. Elas tratavam aquele travesseiro com o maior cuidado, colocavam nos meus braços como se brincassem de boneca, virou mais um momento  onde tudo ficava mais leve. 

Logo na primeira sessão, o catéter da perna se mostrou insuficiente. Fui, novamente, levado à sala de cirurgia, onde reitaram o dito cujo da minha perna e enfiaram uns 5 centímetros pra dentro da minha jugular, no pescoço. Dessa vez, dois catéteres. Um que levava o sangue à máquina e outro que permitia a sua entrada. 

Um incômodo enorme no pescoço, e mais uma cicatriz. Que me cumprimenta todas as vezes que eu me vejo no espelho. Cada vez mais apagada, é verdade. Como quem diz: "Tá tudo ficando bem, cara. Estou indo embora aos poucos e daqui a pouco você estará bem de novo".

A sessão de diálise é um show à parte. Um show de horror, uma sessão de tortura. 4 horas do mais absoluto desprazer.

Funciona assim: você fica, por intermináveis 4 horas, imóvel numa posição. Que no meu caso, em função da lesão nas costas, era quase sempre incômoda. Num dos catéteres é plugado um cano grosso, por onde sai o seu sangue para a máquina, que faz a filtragem e devolve pro corpo através do outro catéter plugado em outro cano grosso. Ambos enfiados no seu pescoço, costurados e tudo de desagradável que isso possa ser. 

Tem gente que leva de boa a diálise, e tem gente que passa mal. Eu caí no segundo time, pra meu azar.

A máquina em si parece uma máquina de lavar roupa, tem a tela redonda na frente e coisas rodando com o seu sangue lá dentro. Faz barulho de máquina de lavar. E lava o seu sangue. Então podemos afirmar que a diálise consiste no fato de plugar desafortunado cidadão a uma máquina de lavar.

Acontece que essa máquina de enlouquecer pessoas que não fazem xixi faz o milkshake do capeta com você durante as 4 horas de sessão. 

O coração corre e sua pressão sobe. O coração desacelera e sua pressão desce. Dá frio. Aí ela esquenta o seu sangue e vc sente o sangue entrar queimando pelo catéter jugular adentro. Depois ela esfria o seu sangue e vc se lembra das pessoas dentro d'água pescando salmão no alasca. Falta ar, o relógio não anda, as costas dóem. Olha, diálise na salinha da diálise não tem como piorar.

Tem sim. 

Numa das sessões, naquele tenaz momento em que sua pressão sobe, a minha subiu demais e a máquina começou a apitar como uma Air Frier, fritando o que eu tinha de energia dentro de mim.

O catéter não aguentou, voou sangue pra todo lado, eu desmaiei e acordei na UTI. Com a máquina de diálise do meu lado a lavar o meu sangue. A sessão não podia parar. Nem pra me limpar, embora as enfermeiras tentassem.

Parecia uma cena do Tarantino. Tipo o Kill Bill, manja? Eu, cheio de sangue. A maca fazia uma poça embaixo de mim. A família, então.. todo mundo empapado de sangue.

De repente me faltou o ar. Desesperadamente. Rapidamente, me colocaram uma máscara de O2. Demorou pra eu respirar direito. Me debatia achando que não ia resiprar nunca mais. Catéter fraquejava, voava sangue e arrebentava um pouco mais o meu pescoço. 

Esse foi um dos momentos que passei nessa aventura toda em que realmente eu achei que ia morrer. Ainda bem que vaso ruim não quebra.

Fiquei mais 4 dias na UTI. Com diálise todos os dias. 

Objetivo de vida: nunca mais pisar numa UTI. Sério, vai por mim e leva isso como objetivo também. Se você conseguir se manter longe da UTI, é porque tá tudo certo.

Com o passar do tempo, eu fui aprendendo a levar a diálise de uma maneira menos traumática.

Na noite anterior à sessão, eu já não dormia. Ficava vendo TV, não importa quão chato fosse o corujão daquele dia. Assim, quando chegasse na salinha da diálise, estaria bem sonado.

Logo de cara, pedia pras meninas o catéter de O2. É aquele caninho com oxigênio que a gente põe no nariz, sabe? Além de me ajduar com a falta de ar de todas as sessões, ele tinha um papel importantíssimo durante as 4 horas de diálise. E como eu havia protagonizado o Kill Bill em sessões passadas, não precisava de autorização médica para tal. Bastava pedir o O2 e lá vinha o caninho da alegria.

Dormir completamente coberto é bom, não é? 100% coberto, da cabeça aos pés. E qual o problema de dormir assim? Falta ar, meu perspicaz amigo. Agora, imagina um caninho ligado no seu nariz, trazendo não apenas ar de fora, mas sim oxigênio puro, limpo, lindo e geladinho? 

Malandro é o gato, que já nasceu de bigode. A gente tem que ir aprendendo. E eu aprendi que o catéter de O2 é um excelente amigo quando vc quer dormir 4 horas sem sentir nada. Além de ajudar a se esconder debaixo das cobertas com a sua família, o O2 puro tem uma coisa meio entorpecente, meio relaxante, não sei explicar. Mas isso tudo, somado a uma noite sem dormir, fazem o ambiente perfeito pra você relaxar e dormir, e assim superar mais uma sessão de diálise. E ganhar mais um sopro de vida, uma forcinha pra chegar no dia seguinte, que era o que eu precisava naquele momento. 

As sessões retiravam 2 a 3 litros de sujeira do meu sangue a cada sessão. Isso me deu forças pra chegar ao dia do transplante. E o resto é história.

Este é um dos mais importantes textos de todo o meu processo de transplante. Peço desculpas aos amigos por ter demorado quase um ano para falar sobre isso. Escrever essas coisas me ajudam a tirar meus demônios de dentro da minha cabeça, e algumas vezes eles teimam em não querer sair. Este relato demandaria uma certa clareza dos fatos, e detesto o papel de coitadinho que expô-los pode sugerir. 

Tal e qual o comediante sem graça nenhuma, mandei minha pior vaia e os tomates os fizeram descer do palco de uma vez por todas.

Fazer piada com quem está passando por maus momentos de saúde é cruel, injusto e covarde. Eu buscava, dentro de mim, tudo o que podia reunir de forças antes de dizer "Vamos pro pau. AGORA". Reunia um exército fraco e frágil. Uma piada maldosa, feita atrás de uma câmera, com o único e vil propósito de ganhar dinheiro e fama sem os merecê-lo, pode enfraquecer o exército de alguém prestes a dizer "Vamos pro pau AGORA". O comediante nutella baber shop não pensou nisso, né? 

Ainda bem que o Will Smith não tinha uma marreta. Que pena que o Chris Brown não fez essa piada na quebrada.

Comentários

Postagens mais visitadas